Deixa Passar O Meu Povo, De Noémia De Souza
Magistralmente
tecidos pela pena primorosa da Poetisa moçambicana Noémia de Souza, os versos
que se seguem são frutos da soma de 4 (quatro) forças imbatíveis, a saber: a da
Negritude, a da Africanidade, a da Poesia e a da Feminilidade.
Deixa Passar O Meu
Povo
Noémia de Sousa
Noite
morna de Moçambique
e
sons longínquos de marimbas chegam até mim
--
certos e constantes --
vindos
nem eu sei donde.
Em
minha casa de madeira e zinco,
abro
o rádio e deixo-me embalar...
Mas
as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E
Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlem .
Let my people go
--
oh deixa passar o meu povo,
deixa
passar o meu povo --,
dizem.
E eu
abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro
de mim soam-me Anderson e Paul
e
não são doces vozes de embalo.
Let my people go.
Nervosamente,
sento-me
à mesa e escrevo...
(Dentro de mim,
oh let my people go...)
deixa
passar o meu povo.
E já
não sou mais que instrumento
do
meu sangue em turbilhão
com
Marian me ajudando
com
sua voz profunda -- minha Irmã.
Escrevo...
Na
minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha
Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e
revoltas, dores, humilhações,
tatuando
de negro o virgem papel branco.
E
Paulo, que não conheço
mas
é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e
misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais,
e meu inesquecível companheiro branco,
e Zé
-- meu irmão -- e Saul,
e
tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando
na minha mão e me obrigando a escrever
com
o fel que me vem da revolta.
Todos
se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto
escrevo, noite adiante,
com
Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
-- let my people go,
oh let my people go.
E
enquanto me vierem do Harlem
vozes
de lamentação
e meus
vultos familiares me visitarem
em
longas noites de insônia,
não
poderei deixar-me embalar pela música fútil
das
valsas de Strauss.
Escreverei,
escreverei,
com
Robeson e Marian gritando comigo:
Let
my people go,
OH
DEIXA PASSAR O MEU POVO.
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